quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Catarse II (ou anti-memória para uma puta triste)

Abomino certas putas que descartam pudores e se pintam, maquiando o escárnio em gargalhadas do outro lado da linha. Não suporto a vibração de suas vozes, o tingido falso e abominante cultivado em eternidade, matando toda a vida. Todas mortas, todas elas morrendo no cume do rio, exalando cera de ouvido em cor de laranja por cima da água-musgo, sufocando em meio ao amarelo enjoado dos próprios cabelos dissolutos, o rosto inchado, se avermelhando na pressão aquosa e desfigurando-se mais e mais. Só então, devoradas pelos crocodilos, elas devidamente serão entregues ao nada, para onde merecem voltar sem mais resíduos. E no oco da escuridão, poderiam talvez soltar um respiro em tortura de paredes estreitas e doloridas, no excesso de tecido adiposo que, junto ao amarelo dos cabelos, elas cultivaram na sua anti-vida, se houvesse ainda algum vestígio.

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Inchaço

Gosto da palavra
intumescido.

terça-feira, fevereiro 21, 2006

Encontro

Joana ligou.
Disse que amanhã é oito e meia.

Ocupação

Fernanda Shcolnik

Às vezes, em agonia, paro e penso:
Acho
que nasci para ler -
e não para escrever.

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

Catarse

Depois da catarse, o susto. A retomada de consciência. Além de não ter depilado as pernas, a mulher mantinha-se estática, porém falava, ainda que confusa, mas sem muitos gestos, abordando alguns pormenores particulares do seu dia enquanto pinçava pelos da superfície. Depois da catarse, um silêncio de culpa. O quão desnecessário havia sido. E o que havia sido necessário para que percebesse tudo. Depois da paz, os gemidos. Antes do choro, um grito. Não obstante, Maria fervia na mesma cozinha, de onde o cheiro do feijão queimado se alastrava na vizinhança. O gás escapava pela janela escancarada da área de serviço. Depois da catarse, um grito. Um êxtase. Do jeito que deve ser. Do jeito que dizem e depois veio a paz. Contagem do zero. Sabia-se omissa, sabia-se do fundo da alma e por isso agora queimava o feijão, imersa nos sonhos mais loucos e alaranjados. Num mar de claro escuro formado de angústias vestidas em conchas, um mar neo-barroco, loucura temporária, porém sem tempo determinado para se diluir em VIDA.

domingo, fevereiro 12, 2006

Para Clarice

Não queria se prender a nada, mas o choro era iminente.
Sentir um vazio, fato comum uma vez na semana.
Queria aprender a amar de verdade. Um sonho.
Pensava em reter idéias soltas para ver se se amarravam.
No espelho oco, nenhuma imagem.
Sons da janela, apenas.
Aquela agonia retida no corpo era quase explosão,
reflexo do desconcerto.

Não podia decifrar o invisível. Disfarçava.
O resto: se danasse, não queria explicar.
Seu rosto tão invisível no mundo.
Quase não se tornava alguém, e era preciso sentir para ser.
Antes ter aquela dor, de fato,
que desaparecer para sempre.

E em toda a sua nulidade, ainda flores ornando janelas.
Nas noites de lua, retia-se ao claro do céu observando estrelas.
Não queria se prender a nada, mas as lágrimas ocasionavam.
Punha ainda flores nos parapeitos, perfumando a casa enquanto cozia.
Tudo tão inefável. Não podia mais com a sua janela.
Antes encenar a vida do que desaparecer
para sempre - ela pensava.
(E realizava)