terça-feira, dezembro 06, 2005

Tempo

Fernanda Shcolnik

Alice pensava quieta por fora. Como era fácil entrar numa crise... Divagando sem rumo aparente, cerzia os caminhos numa fuga, nó imenso pintado no peito. Pensava em linha e agulha, quem sabe desfazê-lo pelo miolo? Pensava na água mais pura, quem sabe amolecê-lo em disfarce sutil, retendo os restos dos pingos nas mãos?

Agora, ela segura sua xícara branca pintada em azul. São flores da avó, dum tempo de porcelanas na varanda e dos sorrisos estampados em telas que secavam esquecidas, e secavam tanto que deixavam de ser. E aquela xícara em branco e céu lhe trazia o som tão tosco que saía do aparelho. As palavras da boca antiga que exagerava num batom tão claro, de festa, transbordando a boca fina e saliente que também ela havia herdado. O sol caía.

As unhas dos pés da avó eram vermelho sangue. Uma fortaleza de mulher retida em meio às unhas. No espelho buscava possíveis rugas ou sinais de um passado. Incompreensão pairando. O nó ainda não foi desfeito. Alice e suas cartas noturnas, caderno noturno de flores em sol. Perdida, pensa na sopa que não digere, na leveza forçosa, cúmplice: até banal. Rasgar-se em pétalas, quem sabe. Encontrar as fendas em meio aos nós que se multiplicam, as saídas do corpo tão coladas, acabadas sem deixar centelha. Ela torce o tronco num respiro.

A luz dissipada deixa as cores pelas cobertas. Os pés que as meias aquecem se encolhem, paradoxais, em busca da brisa. Da janela, o ar seco que o sol preparou. A cama desfeita, a vela apagada, os nós dos cabelos que nunca saíram da casa num dia insólito de abril. Crueldade as praias acesas em mar de outono, os olhos em brilho quase opaco, o sono. Pela varanda, imagens dos vestígios de porcelanas se quebram em vidro. Despedaçam. E a vassoura distante, ela nem sequer pensa alcançar. Quem sabe o vento não faz o serviço num dia de fluidos com gosto de azeite. Na noite, um olho se apaga dormente.