sábado, novembro 26, 2005

Parceria

O poema abaixo foi escrito no final de 2004 e já havia sido publicado aqui no blog. O motivo da repetição é uma inédita parceria. A única que até agora deu certo: minha com o quadrinhista Daniel Paiva. Talvez ele nem saiba, mas foi pra ele que eu fiz esse poema, totalmente ao acaso, inspirada pelo seu fascínio pela música e pelos blocos de carnaval. Talvez isso não tenha sido exatamente uma parceria, por não ter sido um trabalho combinado, mas recentemente eu tive o prazer e a surpresa do desenho dele baseado nesse meu poema. Os quadrinhos estão no site do Daniel e eu espero que vocês gostem tanto quanto eu gostei. Em breve, novas parcerias de poesia com desenho. Aguardem!

Setembro

Fernanda Shcolnik

A louca canta músicas de amor de carnaval.
Em meio à rua em chuva,
os pingos são confetes,
os homens, seus amores,
os guarda-chuvas suspensos, imensas notas musicais.
No vento, onda invisível de alegria
arrasta, em som inaudível, uma corrente de tons.

quarta-feira, novembro 09, 2005

Distensão

Fernanda Shcolnik

Ana queria virar papel. Desejosa. Que vida essa dos caminhos tortos e das curvas e vãos nos caminhos. Na saleta uns papéis cortados, grafia a lápis. Livros na estante e pastas de burocracias. Um objeto em forma de uva para inserir clitóris adentro em noites secas, mas chuva lá fora. Desejosa de um mais, queria era virar papel para se distribuir pelos corredores sem interesse que a cercavam.

Ana e os objetos, na geladeira uma uva em forma de pêra encarava seus olhos e os potes de requeijão vencidos que dormiam na lateral da porta. A tesoura cortava os plásticos recolhidos do seu vôo. Serviam para embrulhar presentes, doces que enfeitava com mel e purpurina. Os caminhos tortos e curvos estavam por todo o lado. O espelho à noite era se olhar nua e crescente, mirando a evolução dos pelos, das próprias curvas e as minúcias de cada gesto e feição efêmeros. Quem sabe tirar uma foto.

Na era digital nada se guarda e Ana lamenta a falta do tanto que tem na memória. Quase transborda e, enfim, se guarda, se esvai, atola a mente estafada dos tantos ares. Incontáveis. De anos e vida ela sabia pouco, embora percebesse a passagem dos dias na mesma órbita da mesa de objetos, dos embrulhos ornados em plásticos, das frutas da geladeira e de toda a reciclagem que elaborava com vento e nó. Perfazia lembranças com linha e cores ocasionais. Queria virar papel para se disseminar ou se extinguir. E ainda assim levantava cedo, manhãs e tardes em gastos a fio. Não tem nunca nessa escolha, não tem isso, não tem não.

terça-feira, novembro 01, 2005

Maquiagem

Fernanda Shcolnik

Chegou toda certinha. Sandálias de dedos nos dedos magros, pulsos finos, seios grandes. Tinha mãos perfeitas para digitadora ou pianista: dedos magros, mãos magras, o braço todo magro, ela quase toda magra.Fazia ginástica com os dedos até ficar com tendinite, não cumpria com as promessas e depois queria tudo pra si, como se tivesse direito ou merecesse. Também, a enxaqueca matava lento, diariamente. Dor no peito, na cabeça, e nem era menstruação!

Detestava ser mulher, repudiava, começou a se mudar, se maquiar, quase que masoquista, se enrustindo, chorando no espelho, riscando a cara, rasgando a própria imagem. Não queria ser mulher nem homem: Queria ser NADA. Um nada que ninguém notasse, para que ninguém percebesse, que não fazia diferença se estava ali, ou não.

Súbito, pegou a maquiagem branca, muito branca, e se embranqueceu inteira: primeiro o rosto, depois pescoço, seios, o tronco todo, chegando ao sexo, às pernas lindas, ossudas, barriga no ponto, não queria mais saber de nada como tinha que ser. Agora, era do seu jeito, e se botou mais branca que parede recém pintada. Pra que virasse fantasma, ninguém a visse. Podiam chamar, que não respondia. Não respondia mais.

Comprou o vestido branco mais branco, mais belo, mais transparente – não importava. E saiu na rua, pela janela, muito solta, voando em queda livre, mais livre que nunca, num SER, enfim, seu. Que parece neutro, mas é um só. Só agora se sentia algo, fosse algo o que fosse, era a sua plenitude de ex-mulher, de um nada flutuante, desperdiçando o corpo em rajadas voadoras, nas calçadas de Ipanema, as dondocas todas fazendo compras e ela lá, voando branca em vestido branco, sem calcinha: seu corpo era um, sua cor também, tudo junto numa brancura una, empolada de pó e nudez, e voou para sempre com suas asas juvenis, fingindo estar num picadeiro.