Parceria
Fernanda Shcolnik
Fernanda Shcolnik
Ana queria virar papel. Desejosa. Que vida essa dos caminhos tortos e das curvas e vãos nos caminhos. Na saleta uns papéis cortados, grafia a lápis. Livros na estante e pastas de burocracias. Um objeto em forma de uva para inserir clitóris adentro em noites secas, mas chuva lá fora. Desejosa de um mais, queria era virar papel para se distribuir pelos corredores sem interesse que a cercavam.
Ana e os objetos, na geladeira uma uva em forma de pêra encarava seus olhos e os potes de requeijão vencidos que dormiam na lateral da porta. A tesoura cortava os plásticos recolhidos do seu vôo. Serviam para embrulhar presentes, doces que enfeitava com mel e purpurina. Os caminhos tortos e curvos estavam por todo o lado. O espelho à noite era se olhar nua e crescente, mirando a evolução dos pelos, das próprias curvas e as minúcias de cada gesto e feição efêmeros. Quem sabe tirar uma foto.
Na era digital nada se guarda e Ana lamenta a falta do tanto que tem na memória. Quase transborda e, enfim, se guarda, se esvai, atola a mente estafada dos tantos ares. Incontáveis. De anos e vida ela sabia pouco, embora percebesse a passagem dos dias na mesma órbita da mesa de objetos, dos embrulhos ornados em plásticos, das frutas da geladeira e de toda a reciclagem que elaborava com vento e nó. Perfazia lembranças com linha e cores ocasionais. Queria virar papel para se disseminar ou se extinguir. E ainda assim levantava cedo, manhãs e tardes em gastos a fio. Não tem nunca nessa escolha, não tem isso, não tem não.
Fernanda Shcolnik