segunda-feira, agosto 29, 2005

Incendiária

Fernanda Shcolnik

Vera pegou um copo de álcool
e infestou a casa.
Todos os dias olhava apática para as roupas lavadas
estendidas sobre o chão úmido
sentindo um receio na garganta, preso.
Punha as mãos quentes sobre a testa suada
e pensava lamentos.
(Pingos caíam do lenço)
Foi numa terça que acendeu o fósforo.
(O sol a pino batia duro na sacada da área de serviço.
Lá fora, soavam sirenes)
Sem pressa alguma esvaziou o copo
deixando uns pingos aos próprios cabelos
e foi em mais um desses dias que ela,
sem cerimônias
e sem sombra de dúvida,
riscou o fósforo na caixa quase vazia
olhando as roupas mergulhadas no inflamável
e o seu rosto, ainda por deformar.

quarta-feira, agosto 24, 2005

Carta de amor

Fernanda Shcolnik

Sentia-se pequena. Quando o ciúme chegava, pintava imensos envelopes em cartolina branca. Neles, escrevia: “CARTA DE AMOR”. Em vermelho.
O mundo era como uma incubadora, que sufocava, sufocava, matando aos poucos, sem ar.
Pegava o ônibus lotado, viajava de pé, cartolina em punhos e entregava ao homem: “CARTA DE AMOR”. Vazia.
Nela, apenas o envelope tentando dizer, talvez desculpar-se por sentimentos tão escondidos, que não se entendia o objetivo.
Onde estava a carta de amor nessa CARTA DE AMOR?
Apenas sentia-se pequena, e inventava coisas simples em papel com tinta, cores fortes, outras cinzas. Era o mesmo ritual. Sempre.
Sentar-se à mesa escura em madeira, acender um cigarro breve, restos de um outro dia, pingar no cinzeiro lento, calmamente, enquanto lá fora é chuva.
Restos de chuva pingada a esmo. Ouve-se ainda o som: da chuva, dos pingos, o grave silêncio que ocupa a casa, os prédios, a rua, bairro inteiro.
Um silencioso no meio do nada, pincel na boca enquanto imagina:
Escrever uma carta de amor, pois a paixão é grande e transborda, sujando o chão, chegando à sala, pairando como fumaça, fazendo desenhos no ar tão limpo...
Enquanto isso, ela ainda espera, sentindo ânsias de choro preso, espera um vômito, talvez um termômetro, para medir a saúde mental.
Ela, que era poeta, já virou prosa. As portas viraram janelas; o lápis, tinta; a carta, envelope.
Então, num estranho movimento, se embrulhou bem por dentro, bem fechado. Lacradinho. E pôs em volta uma fita bege, escrito: “pra presente”.

quarta-feira, agosto 10, 2005

Chuviscos

Fernanda Shcolnik

Chuva rasteira na grama morta.
Alguém espreitando à porta?
Além, uma espera infundada?
Grama na chuva morna e torta.
Quem sabe um granizo para a consciência.
Quem sabe o teu riso contaminado.
Chuva rasteira lavando a algaravia
Secando esse chão do tão seco de tudo
Pensando imagens de risos teus
Num reflexo embutido (de leve)
Na poça.

segunda-feira, agosto 01, 2005

Gradação

Fernanda Shcolnik

Foi no mesmo pôr do sol que Lia se cansara do mundo. Sórdidas lembranças. Vestida com sua nova blusa lilás, contemplava o céu de agosto vendo tudo imerso em bolhas que não se acabavam, pois subiam incessantes chegando ao pescoço, inundando tudo ao redor. Enquanto flutuavam, turvando o mundo, Lia pensava o quão estúpida havia sido, comprando aquela blusa lilás que não mudara em nada o seu pobre espírito. Cogitava a fuga, rebaixando todo aquele cenário que a envolvia, num roxo e amarelo em conflito. Brigando na areia. Misturando-se. Formando uma massa roxa escura quase negra.

Enquanto isso Anete lembrava aos poucos do que existia, resgatando memórias deitada numa cama tão limpa e triste. Inigualáveis as suas lembranças. Cada farelo que adquiria era a prova do inefável e de que, o que não se explica, basta se sentir. E sentia nesse quarto, submersa em silêncio intacto, a pureza do sol tão quente que inundava a areia do bairro, a poucos quarteirões dali. E era como se de fato experimentasse aquela quentura a amornecendo, e como se a vida a convidasse de um modo simples e discreto, brotando cada dia mais. Era o despertar mais bonito e mais sereno. Um descobrir quieto e espaçado. Mais contagioso que o sol.