sexta-feira, março 20, 2009

Alguém sorriu de passagem
numa cidade estrangeira

A vida está nas frestas
O agora: imensa janela

É tempo de fechar feridas
E o tempo é UM

sexta-feira, março 13, 2009

Era quase noite. Enquanto relampejava, Clara deitada na cama sentia o cheiro que o vento trazia. Sentia nos póros a sensação fria pela janela aberta. Passava as mãos nas pernas e sentia seus pêlos. Eram lisos. Tudo era tão liso que cansava. As pernas macias, os sentimentos vagos, uma vaziez que por hora tomava tudo. Tanto mar pela janela, e a calmaria inquietava. Onde as ondas? Onde um caos que estranhamente parecia se buscar?

Era noite. A chuva diminuíra. Clara enfrenta as ruas molhadas. Ouve mantras que transportam para outra cidade. Buenos Aires. Podia ser São Paulo. A cidade da chuva. A cidade cinza dos prédios altos, cidade da sujeira, dos sons de carros. Clara senta-se em frente à vitrine de doces. E pede um sorvete de brigadeiro com casca de chocolate. O sorvete preenche tudo essa noite. O êxtase do mantra noturno. O mantra de Buenos Aires. Na cidade azul que recebe a chuva. E onde ainda faz calor.

O ar é abafado. As janelas abertas e o vento cessa. Adiante uma varanda cheia de vasos de flores. Cores no meio da noite. O mantra que preenche tudo. As unhas por cortar. Os pêlos por tirar. Marcas do corpo no lençol. Tudo desarrumado? Um caos bastante harmonioso dentro dos seus limites. Estar sendo, ter sido. Vittorio. Hilda. Hillé. Clara ensaiando um solo. Alonga as pernas o mais que pode. Flores de Vincent colorem a mesa.

Versos escritos no caos. O caos como a base de tudo. Do começo daquelas primeiras centelhas do universo. Um solo ensaiado em dança. Música repetida. Selos guardados num baú antigo. Que guarda coisas raras. Que não existem mais. Antigos vestidos de avó. Antigos objetos e serpentes bicolores. Esmaltes transparentes. Pipas em papel crepom. Leques rendados. Tudo que é artifício. O granulado do sorvete. A bermuda do surfista. A percussão nessa música que inspira uma roda de alegria e vestidos a girar em cores que se esbatem no gramado.

Alegria que está no todo. No passo. No respiro. Na formiga e no gigante. Na voz da cantora. No céu de infinito. No horizonte do mar. O mesmo mar. E mares nunca antes navegados. Viver não é preciso. Caminhos jamais percorridos. Jamais sonhados ou imaginados por qualquer poeta. De impossível previsão e desenho. O desenho de um mapa não abrange o lugar. O instante de se saber no agora. Clara analisando seu rosto no espelho. Percebendo as rugas, as marcas, as fendas que não podemos perceber na distância de um corpo jovem. A falsa coesão do que na verdade se faz fratura. A vida, o tempo: Puro enigma.

Poder ser pedra
poder ser chuva
um dia, poder ser mar

quando na janela
pingos de luz e água
luminosos se alastram

pergunto
se um dia
poder ser mar
poder ser um

diluir a fina torçura em canção
somar-me aos rastros que não vejo
penetrar as fendas do tempo

um dia a verdadeira luz
o corpo
o senso
a pele, os póros
um dia

SIM.