sexta-feira, julho 22, 2005

Alice

Fernanda Shcolnik

Alice mandou carta sem resposta.
Teria Gisela lido?
Poderia ter morrido, já que a outra se matou. Já que os carros passam todos os dias por cima de pedestres que correm, embaixo de passarelas ornamentais.
Alice mandou carta sem resposta, lembrou que Gisela rimava com pastela. E pensou, não deve ter lido. Tampouco morrido, o que deixa a possibilidade de resposta atrasada.

Era um dia de setembro quando brigou por ciúmes, por falta de afeto por si própria, por uma beleza maior por fora que por dentro. Era setembro quando vislumbrou a chuva, o início da chuva, quando fugiu de si caminhando em ruas estreitas, onde a ciclovia era pouca para tanta gente, e cheia de poças onde não tinha gramado.

Cartas pisadas pelo chão molhado, dia desgostoso pós-festa. Tempo virado, inesperadamente num domingo.
Latas de lixo vazias, serviço de busca na internet com pessoas do mundo inteiro fichadas por sobrenomes.
Um papel encontrado no livro usado, comprado há pouco para leitura insólita e totalmente desinteressada de conteúdo. Desatual, atualmente.

Alice chorou sem querer chorar, pois novamente se partira em pedaços minúsculos, partículas de corpo desusado, pedaços como em cacos, tudo espalhado em locais indeterminados, espalhado em outros lugares. Ausência. Alice corre para encontrar Clarice, aquela dos desafetos, do corpo estranho, da mente indecifrável. Mas Clarice não está. Talvez, como Gisela, pudesse ter morrido, ou apenas não lido o recado grudado ou, ainda, somente errado de esquina.

Enquanto isso, Caetano canta alegremente na máquina de escrever contemporânea e quieta. Um silêncio é também cortado por barulhos de elevador, por análise de palavras, uma a uma, de um poema intencional que causa choro infantil. Alegria, alegria fragmentada em tons.

Marília

Fernanda Shcolnik

Tarde fresca de junho.
Marília chegou da feira com a vitalidade das frutas.
Os ares dessa hora lhe inspiravam.
Abriu a janela, deixando entrar o resto de claridade. Coisa pouca – fim de tarde.
Flores no vaso.
O cheiro de café invadiu a casa, impregnando tudo, corredor e banheiros.
Algo de novo parecia presente. Algo a desvendar numa rotina tão corriqueira, normal. De sempre.
O cheiro do café...
As frutas, o peixe...
Marília sozinha no apartamento. Cortinas presas nas laterais, deixando à mostra seus hábitos.
Dia ainda claro. Coisa pouca – fim de tarde.
Marília pensante no apartamento, os cheiros todos ali, rondando, fazendo companhia.
Tarde quase noite de junho fresco.
As flores da janela já não eram as mesmas. Renovadas, da feira; fechadas em botão.
Marília e suas pernas. Marília branca, deitada no sofá verde, tão comum, como essas casas de vila num sábado. Bem arrumadas e caladas.
Nem sinal das crianças que gritam lá fora, sempre.
Hoje, apenas o silêncio quieto dos idosos que dormem à tarde.
As cores são as mesmas.
Na cozinha, mesa de lanche posta e ponteiros do relógio quebrando a quietude vaga. Biscoitos amanteigados, bule de café, fruteira cheia de gostos na mesa.
Na sala, Marília pensando em quê?
O telefone que não toca, o sol lento que não se põe.
A janela emperrada é revelação de vida.
Marília travada, intrincada, à procura.
Marília e seu banho de cheiro, num banheiro amplo de arrumação.
Marília sozinha e tensa, em sua casa na vila.
Meia hora, e nada.
Uma hora, duas, três...
Marília à espera de quê?
Chega a noite quase escura, clareada de lua cheia.
Os postes de luz iluminam o silêncio que toma conta da rua calma, num dia qualquer de junho.
Em Marília, as luzes se apagam numa ampla cama, que espera pelo mesmo sono, diariamente.

quarta-feira, julho 20, 2005

O homem

Fernanda Shcolnik

Sumiu-se com a boca retorcida, gesto de gosto ruim.
Lá fora, sentia aos poucos o ruminar do estômago e o gosto do almoço subia-lhe pelos arrotos breves, espaçados.
Em meio a árvores e a um matagal, o homem se retorcia e não podia se esconder, pois doía por dentro. Sentia um nó na barriga torcendo todo o corpo quase.
As pernas não se curvavam, mas o tronco buscava posição e a cabeça virava em direção à fila de formigas formada no chão de terra, carregando pequenas folhas verdes e aparentemente vivas.

Era apenas um homem. No entanto retorcia-se, tentando suprimir os arrotos. Não. Agora os arrotos lhe davam bem estar, esvaziavam o corpo de não sei quê. Talvez até mesmo pudesse retornar à confraternização da festa.
Quanto mais se torcia, mais a cabeça tornava ao chão, ensaiando um vômito em ânsias enjoativas que conseguia, porém, prender para dentro com um breve exercício de respiração. Olhava para o chão e esquecia a cor do céu, coberto por árvores que geravam a sombra por onde passavam formigas.

Não poderia vomitar nas formigas. Que levavam alimento à casa, seria aquilo um remédio?, ele pensava quieto.
Imaginou-se de súbito comendo as plantas colhidas pelas formigas. Eram tantas em filas, pretas e verdes, num quase mosaico espontâneo.
Tinha a intenção de um afago em si próprio, algo que o fizesse apaziguar. Como aconchego de barriga materna, num pensamento mais que remoto.
Foi quando deu início a chuva. E o homem, molhado num desespero, tentando erguer o peso sobre as fracas pernas, pisava nas formigas e destruía tudo, fazendo uma só papa grossa misturada na terra, agora enlameada. Tudo aquilo, num instante, um homogêneo.

E a chuva não cessava, mas o homem, sim, apaziguou e não sabia como.
Ninguém pela porta dos fundos, nenhum olhar.
E aquela paz invasiva foi enchendo tudo: o corpo, a chuva, aquele fundo de sombra das árvores que abrigava a cena. As pedras do chão, poucas espalhadas, apareciam, conforme eram lavadas pela chuva morna, que aquecia o corpo, a terra, talvez até destruísse o formigueiro. Não sentia aos poucos aquela dor estranha de gravidez, de intoxicação, era um homem que, aos poucos, se voltava ereto ao seu estado fundamental de pés. A paz ele já não percebia, no entanto se erguia e, quando deu por si, já estava de pé, sentindo plenitude, terapia, sentindo um ar mais másculo, porém um pouco humilde – pequeno grau – , e isso porque era apenas um homem.

segunda-feira, julho 11, 2005

Palavreado

Fernanda Shcolnik

Agrura:
palavra
latente
na alma
do dicionário.
Impressa
causa
impressão de azedo.
Áspera
chega a
escabrosa.
Amargamente sórdida
estúpida
fria
aparece
grossa
na inconsciência coletiva da
poesia parca
rara
escassa e dura.
Bêbada de rumores nãos.
Um recôndito para o poema sem-teto
súplica
(marginais)
improviso.
Causa cáustica
Realidade.
Sons de guizos apresentam
monopólio pós-moderno
incendiário
de individualidades esparsas
solas
semeadas no seco do chão
pessoa esgarçada em luz
fragosa.
Palavra
chave
fecha dura
o asfalto quente
cheia e grossa.
No poema:
flecha.
agrura.

terça-feira, julho 05, 2005

Em memória (ou Resolução II)

Fernanda Shcolnik

Meus olhos ainda molhados:
revejo seus restos no mal arrumado quarto.
Cabelos no travesseiro
copo d´água por beber.
As cinzas do cigarro testemunham noite quieta
no cinzeiro calado
da qual meus olhos ainda molhados
noutro dia.
Penso ainda no cheiro dos cabelos
deixados do teu suor.
Relembro já que custa tanto
a presença árdua
rara
restada em vestígio do toque.
Já que
é vã,
enfim espero.
Vagarosa
por fim
me esqueço.