quarta-feira, julho 20, 2005

O homem

Fernanda Shcolnik

Sumiu-se com a boca retorcida, gesto de gosto ruim.
Lá fora, sentia aos poucos o ruminar do estômago e o gosto do almoço subia-lhe pelos arrotos breves, espaçados.
Em meio a árvores e a um matagal, o homem se retorcia e não podia se esconder, pois doía por dentro. Sentia um nó na barriga torcendo todo o corpo quase.
As pernas não se curvavam, mas o tronco buscava posição e a cabeça virava em direção à fila de formigas formada no chão de terra, carregando pequenas folhas verdes e aparentemente vivas.

Era apenas um homem. No entanto retorcia-se, tentando suprimir os arrotos. Não. Agora os arrotos lhe davam bem estar, esvaziavam o corpo de não sei quê. Talvez até mesmo pudesse retornar à confraternização da festa.
Quanto mais se torcia, mais a cabeça tornava ao chão, ensaiando um vômito em ânsias enjoativas que conseguia, porém, prender para dentro com um breve exercício de respiração. Olhava para o chão e esquecia a cor do céu, coberto por árvores que geravam a sombra por onde passavam formigas.

Não poderia vomitar nas formigas. Que levavam alimento à casa, seria aquilo um remédio?, ele pensava quieto.
Imaginou-se de súbito comendo as plantas colhidas pelas formigas. Eram tantas em filas, pretas e verdes, num quase mosaico espontâneo.
Tinha a intenção de um afago em si próprio, algo que o fizesse apaziguar. Como aconchego de barriga materna, num pensamento mais que remoto.
Foi quando deu início a chuva. E o homem, molhado num desespero, tentando erguer o peso sobre as fracas pernas, pisava nas formigas e destruía tudo, fazendo uma só papa grossa misturada na terra, agora enlameada. Tudo aquilo, num instante, um homogêneo.

E a chuva não cessava, mas o homem, sim, apaziguou e não sabia como.
Ninguém pela porta dos fundos, nenhum olhar.
E aquela paz invasiva foi enchendo tudo: o corpo, a chuva, aquele fundo de sombra das árvores que abrigava a cena. As pedras do chão, poucas espalhadas, apareciam, conforme eram lavadas pela chuva morna, que aquecia o corpo, a terra, talvez até destruísse o formigueiro. Não sentia aos poucos aquela dor estranha de gravidez, de intoxicação, era um homem que, aos poucos, se voltava ereto ao seu estado fundamental de pés. A paz ele já não percebia, no entanto se erguia e, quando deu por si, já estava de pé, sentindo plenitude, terapia, sentindo um ar mais másculo, porém um pouco humilde – pequeno grau – , e isso porque era apenas um homem.